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terça-feira, 26 de julho de 2016

Como curar um fanático

(Amós Oz – Companhia das Letras – 2016)

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

Três conferências, um artigo e uma entrevista com o hiperpacifista Amós Oz, conhecido no Brasil por suas novelas, algumas autobiográficas, sobre a interminável questão Israel-Palestina. Neste livro o antimágico de Oz procura analisar uma de suas preocupações mais candentes de quem nasceu em Jerusalém e fala daquele lugar conflagrado para o mundo: a questão do fanatismo na conduta humana.

Inicia falando sobre a curiosidade como condição para o trabalho intelectual e científico. Esta qualidade é também uma virtude moral. Uma pessoa interessada é sempre melhor porque adquire o costume de ponderar quando os destituídos desta virtude já tem uma ideia pronta. Pessoas sem curiosidade vivem no conforto da rotina, não sentem necessidade de buscar aquilo que está mais além do que já sabem, de explorar o desconhecido e de obter recompensas espirituais gratificantes pelo esforço despendido.

A segunda qualidade humana apontada é o humor, que somado à curiosidade, constitui os dois antídotos contra o fanatismo. Segundo Oz, fanáticos não têm senso de humor e raramente são curiosos.

Se o humor corrói o fanatismo por questionar a verdade, a curiosidade permite buscar respostas que não se limita à cartilha do assentado como definitivo. Para Oz, a fofoca também é filha da curiosidade. Mas a fofoca adora os clichês e reitera nossos preconceitos não saindo da superficialidade do já sabido.

A seguir, narra seu entendimento sobre a questão do mal: primeiro, que a dor que infringimos aos outros é do nosso conhecimento. É mentira que não sabemos que nossas atitudes ferem os outros. Porém, na moralidade do mal, a maior dificuldade consiste em distinguir suas gradações. Por exemplo, o roubo, a pilhagem e a exploração humana. O estupro e o assassinato. A opressão de mulheres, de minorias e a colonização dos povos. O genocídio, a destruição do meio ambiente. E assim, sucessivamente, com as Cruzadas, a Jihad, a Inquisição e os Gulags.

E conclui dizendo que aquele que não sabe distinguir as gradações do mal poderá ser seu servidor. Por isso, o “crescimento do fanatismo pode ter relação como fato de que quanto mais complexas as questões se tornam, mais as pessoas anseiam por respostas simples”. Isto favorece o fanático porque para ele sempre existe uma só resposta para todo o sofrimento e a problemática humana. Acreditar que uma coisa ruim deva ser extinta, incluindo aquilo que lhe está próximo, se concilia com a ideia de que o fanatismo se origina da “vontade imperiosa de modificar o outro para seu próprio bem”.

Significa dizer que o fanático é um altruísta extremado: está mais interessado no outro do que nele mesmo. Sendo pessoas que sequer valorizam a vida privada, o self, eles misturam a autopiedade com o desejo ardente de uma redenção instantânea consubstanciada em um só golpe.

Os antídotos para o fanatismo seriam o humor, o ceticismo e a argumentatividade. Ser jocoso é um sinal da propensão cética de duvidar de uma verdade absoluta e não se importar com a verdade alheia.

Para Oz, o conflito árabe-israelense não é uma tragédia entre o bem e o mal de um lado, mas, uma tragédia no sentido maior do termo: um conflito entre o certo e o certo. Para ele, ambos os lados tem suas razões e seus erros.

Ele detectou a questão da traição e do traidor. O traidor é aquele que muda de opiniões, enquanto o resto de suas amizades e familiares permanece em suas antigas opiniões. Aqueles que não conseguem mudar, não obstante, são os que querem mudar você. E se alguém quer mudar você contra sua vontade significa que você será perseguido por ter sofrido a mudança que aos olhos dos outros se transformou em uma transgressão que deve ser punida.

Outro ingrediente do fanatismo é o sentimentalismo: o fanático prefere sentir a pensar, e possui um fascínio particular pela própria morte. Imaginam o paraíso como um mundo factível e ao alcance dos destemidos e heróis, ao mesmo tempo que desprezam o mundo corrente. Conformidade e uniformidade são as fórmulas amenas do fanatismo. Mas também o culto de líderes carismáticos, políticos ou religiosos, estão nesta categoria.

A essência do fanatismo reside no desejo de forçar os outros a mudar. Eles querem nos redimir, e não poupam esforços para isso, desde a catequização até a destruição consciente do Ocidente. Por fim a cura vem no desenvolvimento do senso de humor, pois é impossível alguém com senso de humor tornar-se fanático.

Aqui terminam as ideias de Amós Oz. O que eu teria a acrescentar em apoio as suas contribuições está na própria literatura. Me refiro a obra de Rabelais, um dos primeiros surtos de riso que surgiu para espantar o espírito piedoso e mortificado com que a humanidade viveu até o Renascimento, onde, segundo a teoria de Mikail Bakthin, o riso começou a destruir todos os dogmas e incendiar a imaginação humana a ponto de afastá-la do fanatismo cristão para sempre. O riso medieval foi uma insurgência da razão contra o espírito piedoso e a falsidade hipócrita causada pelo medo da heresia. Bakthin que viveu e foi perseguido durante o período de Stalin (foi salvo de desaparecer no Gulag pela comutação da pena para um lugar mais ameno), entendeu o poder dessacralizador do riso, a sanidade do banquete e da celebração como realidade existencial. Sua teoria aponta a importância da separação entre a vida oficial e a vida popular, o mundo sombrio dos dogmas e restrições do mundo carnavalesco e espontâneo do povo.

A importância do dionisíaco nos remete à Nietzsche que entendeu com clareza a cura contra o fanatismo pela impossibilidade pessoal de vive-lo em sua plenitude. Nietzsche tinha problemas digestivos e não conseguia ingerir álcool, e segundo minha interpretação, seus problemas fisiológicos foram de tal forma exacerbados que ele sucumbiu à loucura por impossibilidade orgânica de encontrar um paliativo existencial para os terríveis mal-estares que sofria.

A importância do dionisíaco na conduta humana, representado no calendário das festas populares, na embriaguez e na celebração coletiva de danças, teatro, desfiles e variedades, está na origem da cura dos sintomas de ansiedade do mundo antigo e permanece como uma terapêutica eficaz até os dias de hoje, influindo decisivamente como um antídoto para a conduta obsessiva da humanidade.

Não há portanto possibilidade de se evitar o fanatismo se não houver uma reforma na religião islâmica pela criação de uma dissidência (entre tantas já existentes) que não seja hostil a cultura dionisíaca que conhecemos no Ocidente, e que possa prosperar arrebanhando seus desregrados e se pacificando para sempre. Até que isto aconteça, minha receita consiste em pegar um fanático e aplicar-lhe dois porres de vinho por semana, em um ambiente festivo tal que ele possa se derramar em riso e acordar com uma ressaca tão imobilizadora que todo o pensamento de hostilidade aos outros se dissolva em sua própria culpa, aprendendo com isso a pensar em si mesmo e em seus deveres como indivíduo, e a esquecer os outros. Um islamofanático bêbado cantando O Último Desejo de Noel Rosa vai estar curado para sempre. Está aberta a sugestão para a criação da primeira clínica de cura de fanáticos. O tempo urge.


segunda-feira, 15 de julho de 2013

O Ópio dos Intelectuais

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

Uma paródia do Manifesto Comunista parece ser a melhor forma de caracterizar o presente momento em que vivemos: o fantasma do comunismo ronda o Brasil. Pelas escolas e universidades, jornais e revistas, a herança marxista infesta as redações como uma praga divina.

Nunca um governo pobre de espírito, inepto para as ações administrativas, irrisório para qualquer consideração humanística, parece ter sido tão bem qualificado em todos os lares e bares, e subitamente essa confiança entrar em crise. Nunca um movimento político conseguiu tantas adesões na classe universitária, no professorado do ensino médio e nos meios sindicais.

Agregando novas interpretações à surrada doutrina marxista, aplicando uma demão verde ao conteúdo vermelho, esse movimento político levou o país a professar insanamente o sucesso de uma ideologia que já havia sido provada equivocada, mas cujos viúvos apegados à sua fé não se davam por vencidos.

Persistindo na mesma argumentação do passado, não se deram o trabalho de uma reflexão mais aprofundada dos nossos males estruturais, e nem mesmo se permitiram uma oxigenação de novas ideias, pelos limites estreitos de seus evangelhos carcomidos.

Nos anos 50, Raymond Aron escreveu seu célebre livro ‘O Ópio dos Intelectuais’, como resposta à inteligência francesa que – radicada na universidade – fazia do proselitismo estalinista sua bandeira de luta. Enquanto a França se recuperava de suas feridas de guerra com dinheiro americano, os intelectuais franceses esbravejavam contra os EUA e em defesa da revolução proletária.

Sessenta anos depois, o Brasil passa pelo mesmo pesadelo. E a abordagem de Aron não perde sua atualidade. A força do marxismo está em seus mitos subtraídos furtivamente do legado cristão e utilizados como fundamentos para entender o passado, o presente e o futuro através de uma escolástica própria (doutrina que mistura fé com razão).

Aplicando o método marxista ao Brasil, podemos entender por que nossos intelectuais se intoxicam tão facilmente com suas profecias. O marxismo brasileiro possui qualidades que só uma nação avessa ao iluminismo poderia desfrutar: transformar mitos descartados pela história em motivo para criar celebridades nacionais.

Para Aron, os mitos do marxismo são os seguintes:


O Mito da Esquerda

O Mito da Esquerda é entendido por ele como a ideologia que combina: a propriedade estatal dos meios de produção, a hostilidade com a concentração econômica e a suspeita nos mecanismos de mercado.

A impessoalidade do mercado é sentida como algo aterrador, como uma ameaça à liberdade de escolha, como uma sujeição às grandes empresas capazes de subjugar os consumidores com a força do marketing.

Quase sempre são empresas transnacionais que, sendo impiedosamente criticadas, adquirem uma conotação esquizofrênica na mente estatista, ao lhes atribuir o papel de conspiração para subjugar as mentes, envenenar os corpos e destruir a liberdade individual pela escravização dos consumidores aos seus produtos.

Diversos exemplos de acidentes industriais, relatórios de danos ambientais e sociais são utilizados para justificar e confundir a produção econômica com uma conspiração contra os consumidores.

O conteúdo mitológico-esquizofrênico desse pensamento supõe que o modo de produção do capitalismo avançado esteja interessado em suprimir os consumidores pela doença, pelo envenenamento progressivo ou por qualquer outra ação destrutiva, em vez de protegê-lo como bem indispensável aos lucros da empresa, e que a vigilância do governo não seja suficiente para coibir abusos. Segundo esse raciocínio, só a estatização pode resolver o problema dos danos sociais e ambientais, como a poluição.

Revelador de uma inversão fundamental, esse pensamento guarda um propósito que só poderá ser manifestado quando efetivamente esse tipo de consciência tomar o poder: o descaso total para com as pessoas subjugadas pelo governo marxista.

A facilidade com que se propagam boatos sobre a irresponsabilidade social das empresas está na mesma proporção da perda de escrúpulos para sustentar a verdade no resto da vida pública.

Aron usa o termo “Mito da Esquerda”, embora no caso brasileiro o estatismo pertença tanto à esquerda como à direita. Ele é, portanto, um mito mesmo, abrangente, e está relacionado com nossa latinidade, especialmente com a Contrarreforma.

Outro componente do Mito da Esquerda consiste na pregação da igualdade social. Sobre isso, não existe uma análise mais acurada sobre as diferenças humanas de capacitação, nem a impossibilidade prática da igualdade. Para uma sociedade de funcionários públicos, a igualdade estaria assentada no primado da proximidade da remuneração, evidenciando assim a possibilidade concreta da igualdade relativa, sem no entanto resolver o problema do talento humano relativamente ao mérito. Este mito é um dos mais importantes para a educação marxista e foi objeto de um artigo meu, anos atrás, intitulado A Ilusão da Igualdade Social.

O Mito da Esquerda combina também um desejo profundo de reforma social com a eliminação das elites dirigentes, entendendo que somente a tomada do poder de uma nova classe política, tanto pelo voto como pela ação revolucionária, será capaz de implementar tais reformas.


O mito da revolução

Trata-se de um mito lapidar e de origem religiosa. O tipo de revolução marxista previsto por Marx e seguidores do século XIX nunca ocorreu porque sua concepção própria era mítica: nem o desenvolvimento das forças produtivas, nem a chegada ao poder da classe operária abriram caminho para a derrubada do capitalismo pela classe trabalhadora, consciente de sua missão.

Tal como as revoluções de todo o passado humano, a chamada “revolução proletária” meramente levou à substituição de uma elite por outra. Ela não apresentou características especiais para ser considerada como o “fim da pré-história”, como anunciaram os marxistas.

A concepção mítica da revolução consiste em interpretar a história como o motor do progresso social, pela qual o regime capitalista entra em crise dando lugar a uma nova ordem liderada pelo proletariado que toma o poder e estabelece um sistema transitório, chamado ditadura do proletariado, para conduzir a sociedade à sua redenção, ou seja, a uma sociedade sem classes chamada comunismo.

A redenção é também um componente subtraído do cristianismo, e neste não tem relação com a vida social, porém com o homem em sua fé. O marxismo se especializou em contrabandear os elementos da fé cristã para a sua doutrina de redenção da humanidade, na qual o mito da revolução seria o grande marco histórico referencial da passagem para um novo tempo de paz, harmonia e felicidade. Não tivesse o marxismo descaradamente furtado os elementos fundadores do cristianismo, ele não seria uma doutrina tão cativante e capaz de sobreviver a toda a demonstração racional de sua falência social.

Para o marxismo, a história assume o papel de um profetismo: a revolução proletária será essencialmente diferente das revoluções do passado, pois ela permitirá a humanização da sociedade. Somente o profetismo poderia permitir a convicção de que uma liderança partidária estaria seguindo as leis da história e trabalhando para um fim, que será inevitável e redentor, e que lhes permitiria eliminar quaisquer escrúpulos de culpa para promover as execuções de seus inimigos.


O mito do proletariado

Na escatologia marxista, o proletariado assume o papel de salvador coletivo. Trata-se mais uma vez de uma cópia das origens judaico-cristãs da classe eleita pelo sofrimento para a redenção da humanidade. A missão do proletariado, o fim da pré-história sangrenta e de sofrimento do homem graças à revolução – a conquista da liberdade final – estão atrelados à ideia do Messias, de rompimento com o passado, e com a promessa do Reino de Deus.

Nessa escatologia não se entende por que o proletariado tem de ser uma classe revolucionária. Na América Latina, não havia proletários nas guerrilhas de El Salvador e Nicarágua nos anos 80, nas FARC, no Sendero Luminoso, e nem na guerrilha do Araguaia.

Os revolucionários são, na maioria, egressos da universidade que se intitulam a vanguarda do proletariado, como apropriação necessária a uma representação social que só eles se conferem. No movimento estudantil brasileiro, que é o principal fornecedor de quadros para os partidos de esquerda, quase ninguém tem procedência operária.

Assim, a teoria do partido como vanguarda do proletariado nasceu da necessidade de dar direção às massas, sempre propensas a conquistas modestas e, ao mesmo tempo, contrárias às visões apocalípticas.

Para Marx, o proletariado era o servo que iria se revoltar, destituir o patrão e assumir o comando dos meios de produção não para si mesmo, porém para todos. Seus líderes, mais do que dirigentes políticos, seriam os profetas de uma NOVA FÉ a serviço da redenção humana.

O discurso da “emancipação” do proletariado é outro mito gerado na presunção de que o poder socialista tratará as classes proletárias de forma mais humanizada do que o capitalismo. Mas se um operário continua na sua fábrica, como se pode dizer que foi emancipado? E se ganha um salário irrisório e muito inferior ao pago pelos países capitalistas avançados, como se pode dizer que foi “libertado do jugo capitalista”?

Pelo mito marxista, o proletariado é a classe destinada a fazer do velho mundo um novo mundo onde não mais haveria a perversão do dinheiro, onde o capital não tivesse monopolizado e pervertido tudo. A classe operária levaria consigo a juventude do mundo, e o Partido Comunista estaria organicamente vinculado a ela na luta de classes.

O novo mundo seria a continuação na terra da promessa cristã (enfatizada pelos marxistas), guiada pela imanente filosofia que através da explicação científica propõe-se a ser um ponto final em toda a história de sofrimento e crueldade que tem sido o passado humano.

Toda essa construção mítica está voltada para o objetivo da tomada do poder. Trata-se de uma pseudociência criada para anunciar o advento de um novo mundo. A tomada do poder se transforma na emancipação da classe operária pela simples declaração dos dirigentes revolucionários, e não por mudanças na realidade.

Logo, o marxismo não é ciência. É mais um conjunto de asserções em que o real passa a ser o nomeado. Mistura a tradição romântica com uma visão poética de encantamento sobre o futuro, no qual o proletariado é o depositário dos novos valores e sua luta representa a luta de toda a humanidade. Todavia, a negação desses valores significa uma “traição de classe”, sujeita a pesadas sanções reservadas aos hereges.


O mito da História

Já falei sobre este mito na parte do mito da revolução. Porém, cabe uma palavra mais porque é complementar aos demais. A história foi tornada ciência, no sentido de que suas leis ocultas se tornaram conhecidas. A lei oculta é a certeza de que a história se move em direção ao socialismo, que a configura como o regime que irá substituir o capitalismo e instaurar o reino da abundância.

Os marxistas reivindicam que esta lei se torne “a filosofia da história”. A obtenção desse objetivo será feita pelo partido, elevado à condição de vanguarda do proletariado. Essa vanguarda se caracteriza por sua infalibilidade. Não existe um só partido comunista que no período dourado do estalinismo não tenha reivindicado para sua direção o status de infalível. Esta atribuição divina é, não obstante, a condição para a crueldade contra os oponentes. Se um partido não erra, mas apenas considera errados seus dissidentes, seus traidores, seus revolucionários que abjuraram a fé no grande líder, ele precisa suprimir toda a oposição, por mais branda que seja para que sua doutrina ou seu plano de governo sejam impostos sem contestação, e sobretudo para que sua verdade se estabeleça.

O marxismo se apropria da esfera religiosa e sua força provém exatamente de ser uma pseudorreligião. Não pode ser destruído pela razão, pois seus crentes são completamente impermeáveis a ela.

Assim, quando os mensaleiros foram condenados, o partido reagiu como se os mensaleiros estivessem fazendo algo regular, normal, perfeitamente aceitável para quem crê nos fins últimos de seus propósitos.

Para eles, a corrupção não é mais entendida como a negação da lei ou como um delito social, mas como uma estratégia de superação do capitalismo e de seus males, e que uma vez consolidada a nova direção no Poder, vai eliminar a corrupção para sempre.

Este propósito não se sustenta a não ser pela calhordice de permitir que o clero da nova fé tenha direitos sobre a apropriação indébita em nome da causa. E essa causa só pode valer para o clero e ser tolerada para os crentes, mas nunca para os hereges.

Assim, quando houve a denúncia de corrupção envolvendo Demósthenes Torres e José Roberto Arruda, o clero da nova fé foi o primeiro a declarar inaceitável tal comportamento, por não condizente com a moral. Mas com relação às denúncias contra José Genoíno e João Paulo Cunha, condenados do mensalão que reassumiram suas cadeiras no Congresso, esta flagrante ilegalidade foi vista pelo clero da nova fé com naturalidade.

Trata-se de um sentimento que só pode estar escorado na fé e não na razão. Somente a fé com propósitos situados no fim último de um futuro paradisíaco é que pode justificar a dupla razão e a contradição.

E Aron conclui com sua insuperável perspicácia: “a lógica confirma o que as sucessivas doutrinas sugerem: filosofias da história não passam de teologias seculares”. Existe um vínculo entre a história e o fanatismo, na visão do fim da história como a sociedade da abundância que não pode ser aceita senão na sublimidade de seus propósitos. Mas é o fim sublime do homem, postulado na teoria marxista, que justifica a brutalidade dos meios. E isso não vale só para o marxismo, mas para todos os fundamentalismos contemporâneos.


O repertório crítico

A partir desses fundamentos, a crítica marxista produziu (e continua produzindo) um besteirol crítico de proporções avassaladoras. É impossível reduzir todo o amontoado de fraudes criado em proveito da ideia do advento de um novo tempo chamado sociedade sem classes. Vou citar apenas um: o uso da dialética para fins próprios.

O que antes era uma especulação filosófica, no marxismo se transformou em palavra mágica para combater o capitalismo e apresentá-lo como uma sociedade agonizante. Através do talismã chamado dialética, o marxismo anuncia a derrocada do capitalismo em qualquer momento histórico de crise econômica e social.

Foi assim no fim do domínio colonial europeu, confundindo capitalismo com imperialismo a ponto de afirmar que o sistema baseado na propriedade privada e no livre mercado era incapaz de funcionar se não tivesse territórios para explorar. E desde então o mesmo raciocínio percorre as décadas com a força de um dogma.

A falsa noção de que a história se move por forças deterministas é talvez o pior legado do marxismo, um veneno que contaminou até mesmo os liberais. É absolutamente falso dizer que uma ação tomada hoje, define os rumos da história amanhã. Para que isso fosse verdade, os agentes teriam de ter a onipotência que não existe entre os seres humanos.

Aron discute essa questão na filosofia da história para mostrar como a história evolui a partir de escolhas postas para o personagem que de nenhuma forma pode ser vista como determinista. Nem César, ao cruzar o Rubicão, nem Hitler, ao desencadear a operação Barbarrosa, tinham consciência dos fatos que se desenrolaram a partir de suas atitudes no sentido da evolução que tiveram.

Outras pessoas em seus lugares certamente teriam tomado atitudes diferentes, o que configura que a história não pode ser movida por forças deterministas. O ultimato que os ministros austríacos deram ao governo de Belgrado em 1914 poderia ser de outro tom – e se a primeira grande guerra fosse postergada uns poucos anos, a revolução russa teria sido abortada e a configuração do mundo estaria totalmente modificada.

Alguns meses atrás, publiquei um artigo do historiador inglês H. R. Trevor-Roper a propósito desse assunto, com um argumento diferente, porém bastante próximo: História e Imaginação.

Aron desenvolve o argumento a respeito das predições históricas, afirmando que eventos históricos são previstos na mesma extensão em que são explicáveis casualmente. As interpretações retrospectivas formuladas tanto em termos de afirmações factuais: “as coisas aconteceram assim”, ou “tal motivo estava na origem de tal curso de ação”, não permitem que saibamos o que vai acontecer amanhã.

Entretanto, existem fatores previsíveis. Para quem conhece o economicídio dos regimes populistas, os países bolivarianos estão fadados a entrar em crise e fenecer sob a revolta das massas, pois já sabemos que a escassez e o empobrecimento são o resultado geral desses regimes.

O descaso com a lei praticado pelo clero bolivariano, sua cupidez e falta de escrúpulos terminaram revertendo-se no desrespeito à lei pelos crentes dos escalões inferiores e ao fim colocando toda a sociedade em desordem.

A promessa de um futuro luminoso transformou-se num pesadelo sombrio. E o passado denegrido por eles começa a parecer bem melhor do que o presente exaltado.


Os intelectuais em busca de uma religião

Paralelos entre socialismo e religião são bastante antigos. Mas no Brasil, foram escassamente utilizados. A expansão do marxismo pelo mundo guarda similaridades com a expansão do cristianismo.

A este respeito, adverte Aron: “igualmente clássicos são os argumentos surgidos dessas comparações. Acaso uma doutrina sem Deus merece ser chamada religião? Os próprios crentes negam a conexão, mas insistem em que sua crença não obstante é compatível com a fé tradicional – não seriam por acaso os cristãos progressistas uma prova viva da compatibilidade entre o comunismo e o catolicismo?” (p. 265).

Pergunta feita em 1953-55, bem antes da Teologia da Libertação, a mais sofisticada e elaborada tentativa de vinculação do cristianismo com o marxismo, e que mantém representantes até hoje militando a causa do castrismo.

“O fato é que o comunismo sempre guardou sentimentos parecidos com os cruzados de todas as épocas. Ele fixa a hierarquia dos valores e estabelece as normas de boa conduta. Ele satisfaz, no indivíduo e na alma coletiva, algumas das funções que os sociologistas normalmente atribuem às religiões. Mas para a ausência do transcendente ou do sagrado, os comunistas não o negam categoricamente, porém argumentam que muitas sociedades através dos tempos ignoraram a noção de um ser divino sem ignorarem a forma de pensamento e sentimentos, de obrigações e devoções, que o observador de hoje considera como religião” (p. 265).

Para Aron, as ideologias de Direita e Esquerda, Fascismo e Comunismo, são inspiradas pela moderna filosofia da imanência: elas são ateístas, mesmo quando não negam a existência de Deus, ao ponto em que concebem o mundo humano sem referência ao transcendental...

Tal qual nas religiões do passado, as paixões determinavam qual a Igreja que deveria ter o monopólio da missão de interpretar as Sagradas Escrituras e distribuir os sacramentos eliminando todas as outras como seitas hereges, no presente, os partidos comunistas disputam entre si quem é o verdadeiro intérprete das escrituras marxistas e se posicionam para eliminar seus concorrentes com a mesma vênia dos cruzados.

O profetismo marxista está em conformidade com o padrão típico do profetismo judaico-cristão. Todo profetismo condena o que existe e esboça um quadro do que deveria ser ou do que virá; ele escolhe um indivíduo ou um grupo para traçar o caminho à terra de ninguém que separa o miserável presente do futuro radiante.

Para que o sistema comunista de interpretação nunca seja flagrado em carência, a delegação do proletariado ao Partido deve ser total e irrestrita. Isso por sua vez provoca a necessidade de ele negar fatos incontestáveis — a substituição dos conflitos reais e multifacetados da vida humana na luta dos seres humanos em um destino pré-ordenado. A partir daí, surgem o escolasticismo, as intermináveis especulações sobre infraestrutura e superestrutura, as distinções entre significados sutis e vulgares, a rejeição da objetividade e a necessidade de reescrever a história: não existe nada que eles não saibam, eles nunca estão errados, e a arte da dialética permite-lhes harmonizar qualquer aspecto da realidade de um país com uma doutrina que possa ser torcida em qualquer direção.

O militante é persuadido a acreditar que pertence a um pequeno número de eleitos, que está encarregado da salvação de todos. O crente, acostumado a seguir os torcimentos da linha política do partido, a repetir feito papagaio as interpretações sucessivas e contraditórias de vexames como o pacto Nazi-Soviético, por exemplo, ou a “Conspiração” dos Sábios de Sião, torna-se, em certo sentido, um novo homem.

De acordo com a concepção materialista, os homens treinados através de um certo método tornam-se dóceis à autoridade e completamente satisfeitos com sua porção. Os engenheiros das almas não têm dúvidas sobre a natureza plástica do material psíquico à sua disposição.

Costuma-se dizer que a fé comunista é distinguível da opinião político-econômica somente por sua intransigência, que uma nova fé é sempre intransigente, e que as Igrejas se tornam inclinadas à tolerância quando são corroídas pelo ceticismo.


Militantes e simpatizantes

Modernamente, os conceitos marxistas no pós muro de Berlim estão em constante mutação. Eles migraram do terreno da sociedade e da história, onde foram derrotados, para tentar ressurgir de suas antigas ideias rousseaunianas a respeito da natureza.

Fundaram um sistema de interpretação da ecologia e do meio ambiente, que vai do ecomisticismo ao ecofatalismo, como indiquei em artigo.

Por um processo de imantação, todas as ideias que se aglutinam em torno do catastrofismo são defendidas pelas viúvas do muro de Berlim. O pensamento de uma crise iminente do capitalismo, verdadeira paranoia marxista, continua vigente no marxismo do século XXI.

Porém, o fenômeno mais importante ainda é a impossibilidade de certo pensamento intelectual latino-americano compreender que a levedura marxista está radicada em uma sociedade de privilégios, no amplo leque de instrumentos que vai dos cartórios aos sindicatos de contribuição compulsória, da burocracia estatal às entidades de registros profissionais, do modelo de representação política às empresas estatais.

Todo um universo de deformidades sociais, que se originou no passado colonial e que se expandiu incessantemente no estatismo é um instrumento ao qual o marxismo adere e se enraíza, solapando qualquer abertura democrática. Não entender que esse instrumento precisa ser eliminado faz parte da impotência de um certo pensamento de direita, dependente de um passado pré-moderno.

Achar que o marxismo possa ser erradicado só pela evangelização para a virtude das ideias certas é um dos maiores blefes dessa corrente, e uma postura não condizente com a modernidade.

Para a modernidade, pouco importa se um motorista de táxi conversa sobre marxismo ou sobre futebol com seu passageiro. O que importa é o modo de como ele conduz e cobra a corrida. Para a corrente nostálgica de um passado aristocrático, o taxista deve ser um homem preparado e doutrinado para a virtude cívica. Tropeça num idealismo fundamentalista e, não podendo revelar seu pecado, na adoração espartana da sociedade construída em torno de um Estado virtuoso, sempre deixará o caminho livre para que na primeira descompressão, surjam as ervas daninhas do nada sobre o terreno sequioso pela primavera de liberdade.

O único declínio possível da fé que confunde a missão de Cristo com o socialismo é a superação da sociedade que confunde democracia com oligarquia (e está agora dividindo espaço com a nomenklatura).

Somente uma sociedade baseada na propriedade privada e com um estado mínimo poderá fenecer a fé, cujo evangelho sempre foi a adoração do Estado. Quem combate o comunismo e não combate o Estado é apenas um agente disfarçado de uma mesma tirania.

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quinta-feira, 3 de maio de 2012

GULAG

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

Gulag - Anne Applebaum - Ediouro 2004

Anne Applebaum trabalhou na Polônia nos anos 80 como correspondente de jornais ingleses. Acompanhou as greves operárias e o fim do regime comunista. A partir daí interessou-se pelo colapso da União Soviética (ela é especializada em língua e literatura russa) desde 1992. O resultado foi um livro didático e informativo, sem preocupações com análises sociológicas ou teorias políticas. Como jornalista, — e como boa jornalista — soube como filtrar os fatos e apresentar os dados relevantes, organizar as matérias, manter o interesse do leitor e não se aventurar em conclusões apocalípticas ou elocubrações para hipnotizar idiotas.

Mesmo assim não é fácil saber lidar com a abundância dos dados. Ela analisa as origens do Gulag a partir do início da revolução russa, na tomada do poder pelos bolcheviques e a guinada do partido "social-democrata" (era o nome do PC na época) para um partido totalitário e perseguidor das correntes políticas não só de direita, como principalmente de esquerda.

Aliás, a principal conclusão que se pode tirar do stalinismo é que se tratou de um regime que — sob a presunção de acabar com a direita russa — criou a estrutura estatal para liquidar com toda a oposição — a principio real e depois imaginária, isto é, de acordo com as conveniências dos planos mirabolantes do Estado. Este excelente livro aborda os aspectos humanos do holocausto soviético, como por exemplo, como eram feitas as detenções, como eram os estabelecimentos penitenciários, como eram os transportes para os campos de trabalhos forçados, o trabalho nos campos, as punições e as recompensas para os prisioneiros, etc. Ela não esqueceu de falar — a partir do depoimento dos sobreviventes e das obras inumeráveis dos fugitivos — dos guardas, dos prisioneiros, das mulheres e crianças que nasciam nos campos, dos convalescentes, das estratégias de sobrevivência no ambiente siberiano, das rebeliões e fugas.

Tudo isso nos informa com depoimentos os mais chocantes que não se detém aí. Ela ainda guarda energia para abordar um tema analítico, como a ascensão e queda do complexo industrial baseado no trabalho forçado dos campos, situado nos perídos de 1940 a 1986.

Em seu longo e detalhado livro, cita uma bibliografia preciosa para quem gosta de cavar livros raros. Mas paradoxalmente, não fala num dos livros mais significativos de denúncia do stalismo no início dos anos 40, "O Iogue e o Comissário" de Arthur Koestler, que ficou famoso apenas pela sua novela "O Zero e o Infinito" em que retrata a detenção e julgamento de um dos maiores leninistas e último sobrevivente até sua liquidação por Stalin: Bukharin. (Veja resenha neste blog).

terça-feira, 17 de abril de 2012

A NOMENKLATURA

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

A NOMENKLATURA – Michael S. Voslensky – Record – 4ª edição, c. 1980. Disponível no site da estante virtual com preço entre R$6 e 12 reais.

Qual o interesse em saber como vivia a classe privilegiada na União Soviética se ela implodiu e a velha Rússia emergiu em seu lugar com novas características? Creio que a resposta é simples: o modelo soviético não se diferencia muito dos demais regimes políticos baseados no estatismo, incluindo o Brasil. É claro que não pretendo comparar o fascismo benevolente brasileiro com a brutalidade do regime soviético, mas demonstrar como todo socialismo revolucionário, ao assumir o poder pela violência, se organiza eliminando fisicamente a elite anterior e criando sua própria elite com tantos ou mais privilégios que seus antecessores. E países como China, Cuba e Coréia do Norte estão aí para mostrar como a classe dirigente, chamada por Voslensky de Nomenclatura, se consolida e age no poder. Falar das possibilidades de mudanças desses regimes implica em conhecer melhor o alicerce de todos eles e, também, nos conhecermos melhor pelo parentesco com a nova elite bolivariana na AL. O leitor talvez não saiba, mas estão em curso diversas propostas de cubanização do Brasil, como a reforma do sistema político, a implantação dos médicos pé no chão, etc. Ou seja, nesta fase em que vivemos, o comunismo como modo de organização é explicitado por uma elite cujo poder confunde-se com a administração, dissemina-se gradualmente e permite-se identificar por suas pegadas nas questões que propõe.

A princípio, pode-se creditar o trabalho de Voslensky como fundamental pela sua abordagem aos numerosos casos documentados dos modos de agir, pensar e se comportar da Nomenclatura, de que foi membro. Voslensky atuou nas rebarbas do regime e terminou se ‘exilando’ na Alemanha a partir de um convite para integrar o corpo docente de uma Universidade. Em 1974, amaldiçoado pelos russos, Voslensky perdeu sua cidadania, reconquistando-a em 1991 sob Gorbachev. Seu trabalho pode ser considerado essencial para se conhecer, por dentro, a funcionalidade do sistema russo.

Por desconhecer internamente um sistema, seus analistas são levados a trabalhar sobre sua visibilidade externa e suas tragédias. Percebe-se isso muito bem no Brasil. Nossa imprensa, que se diz livre, apenas replica o que dizem os burocratas – não sabe o que acontece dentro do Estado. Voslensky trata de ambas as coisas com naturalidade, sem afetação nem panfletismo, e, com eficácia, consegue abordar todas as arestas da Nomenclatura e demonstrar como uma nova classe se forma e se enraíza na sociedade. A princípio, nos apresenta a nova classe como uma classe escondida, que se nega a si mesma na hipocrisia de representar outra classe. Com dados reveladores, discorre sobre o embrião dessa nova classe e sua consolidação como uma aristocracia travestida de vanguarda proletária. Depois, analisando detalhes da nova ‘administração’ – desde sua carreira até sua hereditariedade, Voslensky está pronto para mostrar que essa classe serão os novos exploradores do povo soviético, que, em nome de um novo sistema, irá expropriá-lo de seus bens.

A relação do novo sistema com a propriedade privada não é hereditária nem escritural, mas de apropriação, concessão e uso, tornando-a um bem da Nomenclatura, que não pode ser extorquida – a menos que o proprietário caia em desgraça. Mas o aspecto mais singular é que o novo proprietário não sustenta a propriedade ocupada, mas utiliza o Estado como fornecedor de mão de obra e de recursos para sua manutenção e provimento.

Trata-se, portanto, de um sistema mais próximo ao feudalismo do que ao capitalismo, como já notamos em governos demagogos latino-americanos.
Voslensky estruturou sua análise nos seguintes tópicos:

I – A classe escondida
II – O nascimento da nova classe dominante
III – A classe dirigente da sociedade
IV – A classe dos exploradores da sociedade
V - A classe dos privilegiados
VI - A ditadura da nomenclatura
VII – A classe que aspira a hegemonia mundial
VIII – Uma classe parasitária

Com farta documentação de apoio às suas teses, Voslensky discorre em 443 páginas todos os processos que tornaram o regime comunista soviético um dos mais abomináveis da face da terra, sem jamais perder a fleuma do diplomata que foi e do professor universitário que encerrou sua carreira na Alemanha, onde morreu em 1997, aos 77 anos de idade, provavelmente lúcido o bastante para perceber que seu trabalho não tinha sido em vão. O mundo que descrevera no final dos anos 70, prevendo o fim do comunismo pelo empobrecimento progressivo da sociedade, realmente terminou ocorrendo. Os avatares caricaturescos da velha URSS, ainda existentes, são menos importantes do que a possibilidade de se reviver os mesmos padrões de dominação social com um novo estatismo se formando no quintal bolivariano da AL. No Brasil, são esses modelos que se tentam introduzir no processo eleitoral e na organização social com nomes dissimulados de ‘controles, democratização, etc’.


A CLASSE ESCONDIDA

Citando numerosas fontes, desde os primórdios da revolução de 1917 até os anos de 1970, Voslensky nos fala que os escritores da época, especialmente os russos emigrados dos anos 20, diziam que a nova classe dirigente russa era a classe burocrática que detinha o real poder de mando. Entre eles, o livro de Milovan Djilas mostrou-se fundamental para o entendimento dos mecanismos do poder de uma ‘nova classe’ que se desenhava nos países socialistas. “Os dirigentes constituem um grupo humano numeroso, que se distingue dos outros grupos da sociedade soviética por seu lugar (preponderante) no sistema de produção social; por sua relação com os meios de produção (o direito de dispor deles); por seu papel (diretor) na organização social do trabalho e pela parte (importante) da riqueza social de que se apropria” (p. 35). Esta é uma citação das ideias de Lênin com as observações do autor entre parênteses. Esse grupo dirigente constituía uma classe, uma classe que se escondia com o nome de outra — o proletariado. Mas o próprio proletariado, por ser mais abrangente e disseminado na sociedade, não tinha relação com a classe no poder. Poderia se argumentar que a classe no poder seria a ‘representante’ do proletariado, seu partido político. Voslensky demonstra que a falsidade da doutrina consiste exatamente nisso, e, usando a terminologia marxista, compara as ideias de Marx e Engels com as de Lênin para demonstrar que sendo o proletariado quase inexistente na União Soviética, não poderia jamais representar a sociedade, cuja maioria era camponesa. Portanto, a revolução não poderia ser a superação de um capitalismo que era secundário e incipiente. Em outras palavras, a ‘hegemonia do proletariado’ alcunhada por Lênin não passava de uma confusão indescritível (p. 55).

Com isso, Voslensky demonstra que o poder revolucionário nada tendo de evolutivo, no sentido de respeitar as liberdades e a democracia, porém tratou de consolidar uma burocracia tentacular de dominação da sociedade, para viver às suas expensas e ampliar seu poder através da violência progressiva. Com o nome de ditadura do proletariado, o novo regime confiscava todos os recursos da sociedade para si, representando a si próprio com o nome de outra classe. Ao se inscreverem no partido, os candidatos se declaravam de origem operária, fato que Voslensky ironiza dizendo que bastava olhar suas mãos para perceber que se tratava de um engodo. Portanto, o que seria o novo governo? A resposta é simples: uma ‘ditadura sobre o proletariado’, se evidentemente a classe fosse preponderante. Não o sendo, era uma ‘ditadura sobre o povo’. A argumentação de Voslensky baseia-se nos fatos históricos da constituição de Stalin de 1936, quando a terminologia ‘ditadura do proletariado’ foi substituída por ‘governo do povo’. Como pode uma ditadura acabar sem comemoração e sem data definida? Analisando as incoerências, o autor consegue desmistificar todos os fatos utilizando a própria linguagem e documentação do PCUS (Partido Comunista da União Soviética).

Esse é o lado surpreendente de ‘A Nomenklatura’. O próprio marxismo desmente os fatos ocorridos na URSS. Mas não se pode dizer que isso tenha sido uma deformação do marxismo. Aqui, teríamos que entrar com extensa argumentação para provar que o desenvolvimento do capitalismo não geraria uma classe operária revolucionária, mas seria seu próprio fim, como conhecemos nos dias atuais. Portanto, o historicismo de Marx estava errado: a sequência pós-capitalista é a sociedade tecnológica que conhecemos no Primeiro Mundo, e que está em franca expansão na Ásia — o chamado capitalismo avançado, ou sociedade do conhecimento.

Assim, na URSS, os revolucionários profissionais criaram a nomenclatura para preencher a enorme quantidade de cargos do governo russo, usando o critério de fidelidade, e não o de competência, como no Brasil. Embora o regime também escolhesse pessoas competentes para cargos técnicos elevados, o padrão administrativo se baseava no nosso conhecidíssimo nepotismo. “Durante os numerosos anos em que vivi na URSS, raramente encontrei pessoas verdadeiramente talhadas para o posto que ocupavam. E era precisamente com as pessoas competentes que se causavam mais dificuldades: como não correspondiam ao critério habitual de seleção de quadros, pareciam ocupar os postos que jamais deveriam ocupar...” (p. 71-72). Era o que ele chamava de perfil político na preferência da seleção, uma prática que conhecemos de cátedra no Brasil, comprovando que mais além da ideologia existe uma plataforma comum: o estatismo.

Voslensky mostra como Stalin desenvolveu sua liderança nesse tipo de seleção. Ao contrário de seus pares revolucionários, que se ocupavam com as diretrizes gerais da revolução e das transformações necessárias, Stalin cultivava a ordenação de fichas de pessoas em seus arquivos. Humoristas dos anos 20 chamavam Stalin de camarada fichário (p. 72). Mas foi com essa diligência sobre pessoas e cargos que ele criou uma enorme estrutura de apoio pessoal, chamada Uchraspred, que significava ‘recenseamento e distribuição de cargos’, uma vez que qualquer promoção passava pelo seu crivo. Bastante complexas, tais estruturas continham diversas comissões ligadas ao Comitê Central. Só em 1922, foram distribuídos 10 mil postos na administração soviética (p. 73), para cargos de secretários de comitês regionais e distritais, e membros correspondentes.

Percebendo a crescente ‘burocratização do partido’, Trotsky alertou seus camaradas revolucionários. Mas, após a morte de Lênin, com o carreirismo já estabelecido, 240 mil novos membros foram admitidos no partido. Com isso, o efetivo do partido que vinha inchando escandalosamente passou de 386 mil para 736 mil. A metade era de novos membros estranhos à velha guarda bolchevista, que mais tarde permitiriam a Stalin eliminar os antigos revolucionários e ser o verdadeiro dono da revolução.

Nos anos 30, os expurgos marcaram outra mudança radical renovando a elite dirigente. Voslensky, então um adolescente, testemunhou essa fase sangrenta. Era a nova aristocracia contra a velha aristocracia dos revolucionários. Foi o período em que famílias inteiras caíram em desgraça, e os campos de trabalhos forçados da Sibéria se viram povoados por milhares de pessoas chegando em trens apinhados correndo pela estepe siberiana, depois de dias de viagem trancados nos vagões.

Os detalhes dos expurgos têm um toque especial. Todos os analistas dessa fase negra da Rússia contam a mesma história com seus próprios detalhes sobre os personagens que conheceram ou pesquisaram. Voslensky não foi diferente. Mostra como foram moídos todos os grandes revolucionários do passado, e como na era Kruvchev era praticamente impossível se obter qualquer documento a partir do assassinato de Kirov (1934), o então poderoso secretario do PC de Leningrado, exatamente porque durante os expurgos nascera a nova classe dirigente que 20 anos depois comandaria todo o país e que ocuparia o lugar dos condenados.

O autor resume então assim: “o processo de nascimento da nova classe dominante soviética realizou-se em três etapas. Na primeira etapa, foi criada a organização dos revolucionários profissionais, embrião da nova classe. A segunda começou pela tomada do poder por essa organização em novembro de 1917: formou-se uma direção em dois níveis, o nível superior da velha guarda leninista e o nível inferior da Nomenclatura stalinista. A terceira etapa foi a liquidação da velha guarda leninista pela Nomenclatura” (p. 86).

O desejo do poder pelo poder é uma lição para os nossos dias na realidade brasileira. Quando o poeta Evtuchenko exprimiu este estado de espírito: “pouco importa que o poder seja dos sovietes, o importante é o poder”, estava nos dando uma lição sobre o que aconteceu com o lulismo pós 2003.


A CLASSE DIRIGENTE DA SOCIEDADE SOVIÉTICA

Neste capítulo, Voslensky faz um retrato literário de um nomenclaturista hipotético, Ivanov, e de sua luta cotidiana para ascender na organização. Mostra os subterfúgios, as lealdades, as trocas de favores, a criação das redes de contatos e de subordinados, o servilismo a que estão sujeitos os membros para desfrutarem dos privilégios do Estado. Mostra como um candidato a um cargo superior é escrutinado pelo comitê correspondente, a quantidade de assinaturas, e o vai-e-vem de certidões que conferem sua aceitação. Essa papelada recebia assinatura dos grandes figurões da KGB. O autor mostra em detalhes o funcionamento do apparatchick burocrático, e repete o caráter escondido, furtivo dos dirigentes, sua necessidade de esconder-se para não revelar sua natureza aristocrática ao resto da população. Mas um funcionário que se eleva ao primeiro escalão e que vai gozar dos privilégios para toda a vida, não significa que não possa ser degolado. Sua estabilidade depende de seguir as regras, de não atrair a desconfiança nem a ira dos superiores. E traça a crônica dos destinos de algumas personagens importantes da era pós-Stalin, que ele mesmo conheceu, por seus afazeres desconformes com as expectativas do Comitê Central.

Mostrando que “a vanguarda da classe operária” (Lênin), “a mais alta forma de organização da classe operária” (Stalin) eram um mito, pois a nova classe não tinha origem operária coisa nenhuma, o autor prova que esse mito era semelhante ao da origem ariana apregoada pelos nazistas, que na verdade era também fajuta. Mesmo quando um nomenclaturista provava sua origem no campesinato ou no proletariado, ele não tinha vínculo algum com essas classes, e a maioria deles desprezava sua origem operária e camponesa.

Voslensky cita o que o escritor Konstantin Paustovski escreveu sobre uma turnê de turistas soviéticos pela Europa de trem: “Os operários, os engenheiros, os artistas viajavam de segunda e terceira classes; a Nomenclatura viajava de primeira. Não é preciso dizer-lhes que a Nomenclatura não tinha nenhum contato com a segunda e terceira classes, pois, além do mais, não poderia tê-lo; estavam prevenidos contra tudo, exceto contra os de sua própria situação. Eram espantosos pela incultura. Tinham uma concepção toda particular daquele que fizera a honra e a glória de nosso país. Diante de uma pintura do Juízo Final, um nomenclaturista perguntou: ‘É o julgamento de Mussolini?’ e, olhando a Acrópole, um outro indagou: ‘Como o proletariado pode permitir que se construísse coisa semelhante?’ Um terceiro, que ouviu alguém admirar o azul do Mediterrâneo, perguntou brutalmente: ‘será que nosso mar é menos belo?’ Essas bestas ferozes, esses exploradores, esse cínicos obscurantistas, diziam palavras ostensivamente anti-semitas que não seriam renegadas por verdadeiros nazistas. Aprenderam a ver no povo apenas o adubo que fertiliza suas próprias carreiras: intriga, calúnia, assassínio — eis suas armas... Os nomenclaturistas se escondem atrás de slogans, discursos blasfematórios em que afirmam agir pelo bem do povo” (p. 115-116). É o que ele chama de a classe dos desclassificados, dos que galgam os mais altos níveis da sociedade sem nenhum mérito, nenhum preparo, nenhuma condição intelectual.

Nos 3 escalões de comando, havia 3 milhões de privilegiados. Mas o partido comunista tinha 17 milhões de indivíduos. O que mostra que nem todos do partido estavam desfrutando dos privilégios. Voslensky apresenta os números dessa aritmética em diversos períodos históricos, conforme sua coleta de dados. Depois, mostra como funciona o nepotismo com nomes conhecidos do regime. Mas como se tratava de viver sob a doutrina de uma sociedade sem classes, o autor nos oferece o quadro real do que vem a ser essa sociedade.


A CLASSE DOS EXPLORADORES DA SOCIEDADE SOVIÉTICA

Neste capítulo, Voslensky analisa como funciona o sistema de propriedade no regime socialista. Fazendo uma revisão do assunto na obra de Marx, ele demonstra que mais uma vez os escritos de Marx foram modificados na URSS. O artigo 10 da Constituição soviética dizia: “o sistema econômico da URSS se funda na propriedade socialista dos meios de produção sob a forma da propriedade do Estado (de todo o povo) e da propriedade colcoziana e cooperativa. Os bens dos sindicatos e das outras organizações sociais, necessários à realização de suas tarefas estatutárias, são também propriedade socialista”.

Depois de examinar o conceito de propriedade privada, chega à questão da propriedade estatal. Se o Estado é um aparelho da classe dominante, ele passa a ser a propriedade da nomenclatura de fato, mas não de direito. No caso, o direito à propriedade individual foi abolido, mas se a propriedade continua existindo, ela então passa a ser ‘social’ no nome e ‘particular’ nos benefícios. Assim, os chefes de fábricas são a classe dirigente que recebe salários executivos e dispõe do resto do aparelho do Estado para si na condição de vitaliciedade na nomenclatura. A propriedade é, portanto, condicionada à posição do membro na estrutura.

Como a doutrina marxista dizia “o estado é o aparelho de dominação da classe dominante”, no regime socialista esta dominação pertence aos seus dirigentes, sendo a nova classe que se esconde em nome de todo o povo, mas que utiliza esse subterfúgio para impor uma exploração cruel ao resto da população. Isso pode ser comprovado nas diferenças de salários, e no estilo de vida de governantes e governados. O autor discute minuciosamente cada tipo de propriedade, seus estatutos, e depois conclui que nada do que está escrito implica em conformidade com a disposição estatutária. Por exemplo, um sindicato pode ter uma propriedade, mas os membros filiados não podem vendê-la, repassar ou extinguir. Somente a hierarquia dos dirigentes do partido tem esse poder.

“A ‘lei econômica fundamental do socialismo’ formulada por Stalin pode ser considerada a afirmação mais fantasiosa da ‘economia política do socialismo oficial’. Esta lei garante ‘a satisfação máxima das necessidades materiais e culturais, sempre crescentes, de toda a população pelo crescimento e aperfeiçoamento constantes da produção socialista baseada na técnica mais evoluída’ “ (p. 152).

Triunfado o socialismo, a satisfação das necessidades da sociedade começa a cair. A produção diminui, a escassez aumenta. Comparem, por exemplo, o carro-chefe da produção cubana, a cana de açúcar, cuja produção em 1970 era de 8 milhões de ton/ano mas em 2010 de apenas 2 milhões de ton/ano. Na União Soviética ocorreu a mesma coisa. Portanto, a única certeza que se tem é que a satisfação das necessidades da sociedade não é o fundamento da lei econômica do ‘socialismo real’.

“No processo de produção, que fim persegue a população ativa? Procura perpetuar o poder da classe dominante? Não, sua finalidade é muito simples e compreensível: produzir para o consumo, não para o da Nomenclatura, mas para o da população trabalhadora. Os homens desejam uma oferta de produtos que não satisfaça somente os privilegiados nas suas lojas especiais: querem um habitat em lugar de casernas e datchas do Estado; automóveis para o comum dos mortais em lugar dos carros de combate e das limusines governamentais; querem manteiga em lugar de canhões. Querem que o processo de produção sirva à satisfação de suas necessidades” (p. 154).

Então, como explicar que um país autossuficiente em alimentos possa produzir somente 20% dos alimentos que consome depois de 50 anos de socialismo, como é o caso de Cuba? A única explicação possível é que o socialismo é um sistema voltado para a classe que assumiu o poder, em oposição ao resto da sociedade. Sua função é explorar ao máximo a sociedade, confiscando para si todos os recursos disponíveis em nome da governabilidade.

Mas a propaganda oficial diz exatamente o contrário. Do ponto de vista da explicação da economia capitalista, os teóricos do socialismo afirmam todos sem distinção que a economia capitalista funciona da seguinte forma: um capitalista decide produzir um bem. Todo o capital é investido na produção desse bem. Os demais capitalistas, pressentindo o negócio, investem também na produção do mesmo bem. Logo, o mercado se satura, os depósitos se enchem de mercadorias que ninguém compra, a produção entra em crise, os bancos quebram, e os empregados vão para a rua. No socialismo real, isso não acontece porque a economia é planificada. Nada é desperdiçado na superprodução, porque esta não foi planejada para o lucro. Este argumento domina a maior parte dos debates entre a juventude socialista, que vê com horror a abundância por tratar-se de um consumismo que esgota os recursos naturais do planeta. O resultado é a crença em uma ideologia que vai deixar os recursos naturais onde se encontram e produzir a privação, a escassez e o tormento da população desassistida de todos os benefícios da tecnologia e do progresso material do homem.

De fato, assistimos hoje em dia a uma retomada dos princípios fundamentais da economia socialista através da ecologia. Não haveria um renascimento tão forte do socialismo planificado se não se vendesse com sucesso a ideia do esgotamento dos recursos naturais do planeta. Quando eu era jovem, na primeira crise do petróleo de 1973, dizia-se que o petróleo iria acabar no máximo em 30 anos. A cada crise, o argumento retorna com uma força avassaladora. E, no entanto, as reservas conhecidas aumentam cada vez mais, e apesar do planeta já estar consumindo pouco menos de 100 milhões de barris diários, os primeiros protótipos de carros híbridos começaram a aparecer com capacidade de percorrer 100 quilômetros com um litro de gasolina, muito antes de o petróleo acabar.

Ora, a força do capitalismo está em sua anarquia, no fato de sua economia não dispor de uma autoridade diretora. A economia capitalista funciona como uma centopeia que move suas patas em harmonia sem que o cérebro tenha que comandar uma a uma. Mas, se uma delas ‘emperra’, o cérebro logo toma conhecimento e age correspondentemente. Portanto, não existe uma planificação, ou seja, uma análise refletida sobre cada um dos mecanismos de ação dos mercados, e se tal ocorresse, ele entraria em colapso, pois qualquer órgão planejador é menos eficaz do que a interconexão dos elos de cada um dos produtores em ação. E quando o mercado enfrenta problemas, ele é mais ágil e eficaz para se redesenhar do que qualquer burocracia, por melhor que seja, tanto mais se escolhida por critérios políticos.

Quando Lênin discorreu sobre o Imperialismo em sua obra clássica, ele afirmava que o colapso do capitalismo viria da monopolização da economia, que criando oligopólios cada vez maiores, “engendra inelutavelmente uma tendência à estagnação e à putrefação. Na medida em que se estabelecem preços de monopólio, isto faz desaparecer os estimulantes do progresso técnico, e, em seguida, qualquer outro progresso; e torna-se, então, possível, no plano econômico, frear artificialmente o progresso técnico” (p. 159). Voslensky cita Lênin para concluir que é exatamente o que ocorre no socialismo. Basta, portanto, ler a obra de Lênin e colocar a palavra socialismo no lugar de capitalismo que as peças se encaixam. Pois o socialismo é a realização final dos monopólios estatais e da estagnação e putrefação da economia.

A tônica de analisar os clássicos do marxismo e depois mostrar que a crítica ao capitalismo feita por marxistas é, em última análise, uma crítica ao próprio socialismo real, confere a originalidade da obra de Voslensky. Mas isso não nos deveria surpreender. A essência da mentalidade marxista consiste em atribuir os maiores defeitos aos outros e depois praticá-los insensivelmente, não por sadismo, nem por arrogância, mas por negarem a lei mais básica da natureza humana: o direito à propriedade individual e de todas as formas de empreendimento e sobrevivência sem a tutela do Estado. A mentalidade marxista difere da mentalidade liberal comum por entender que os fatores da produção possam ser intelectualizados e controlados por um órgão neutro e eficaz. Para que isso ocorra, é preciso que a mente esteja carregada de altruísmo e de vontade de ação para o bem comum. Aceita a premissa, a razão humana tropeça na natureza e o resultado é o artificialismo da sociedade na disjunção de todas as suas partes. O planejamento dos bens de consumo torna-se a prisão do homem na escassez.

E o que fazer quando o fracasso é inelutável na produção? A nomenclatura recorre então a diversas técnicas de dissimulação que o autor chama de pripiski, a palavra russa para embuste. “Inclui-se, conscientemente, nas contas das cifras inexatas o correspondente aos produtos que não foram fabricados. Esta técnica se baseia na acepção clara e límpida do caráter inteiramente teórico e burocrático da planificação e da contabilidade: os gabinetes do Gosplan e dos ministérios prevêem disposições teóricas sem conhecer a realidade; o resultado, da mesma maneira, não tem nenhuma relação com a produção real” (p. 166).

Mas a crônica dos embustes vai longe. O autor comenta anúncios solenes de primeiros-secretários falando sobre o aumento de 280% na produção de carne, ou a maior colheita vindoura de algodão, que depois se revelaram “pripiski”. A farsa de Alexey Stakhanov (que teria extraído 102 toneladas de carvão sozinho em 5:45 hs em 1935, 14 vezes sua cota) com sua vertiginosa produtividade era “pripiski”. Na Geórgia de Stalin, que desfrutava de privilégios inalcançáveis para as demais repúblicas, onde os cidadãos se vestiam muito melhor do que no resto do país, e gastavam muito acima das possibilidades de um trabalhador soviético, havia “uma corrupção tão grande que tudo podia ser comprado ali: um diploma ou um lugar na universidade, até mesmo um certificado do título de ‘herói da União Soviética’. Isto continuou após a morte de Stalin, cujo culto foi oficialmente mantido na Geórgia. Tanto os georgianos consideravam sua república como uma região à parte, que os recém-chegados, que se espantavam com os costumes incomuns da província recebiam de volta a pergunta: ‘A Geórgia não lhe agrada? Então, volte para a União Soviética’ “ (p. 167).

Naturalmente, os relatórios sobre a produção que satisfaziam e até mesmo ultrapassavam os planos quinquenais eram todos falsos. Um pesquisador norte-americano chamado Naum Jasny analisou dados estatísticos publicados na URSS e revelou numerosas falsificações. Quando se anunciava um aumento de salário no ano, Naum descobria que na verdade havia uma redução. Isto em 1948. O próprio Kruvchev denunciou a falsificação de dados da era Stalin, mas não adiantou: era uma atividade inerente à Nomenclatura e continuou em seu tempo.

Para Voslensky, a necessidade de manter o poder implica em uma sociedade na qual a precedência seja dada à indústria pesada, e não à de bens de consumo. De fato, a indústria bélica soviética sempre esteve sob intenso incentivo do governo russo. Era a fonte de seu poder e de sua permanência. Mesmo assim, a falsificação de dados e relatórios, a queixa de engenheiros testemunhada pelo autor atesta que também ali a situação era aflitiva. Isso não impedia que a indústria pesada desfrutasse de uma enorme propaganda, especialmente notável na construção de foguetes durante a corrida espacial. O livro ‘Escolhi a Liberdade’ de Kravchenko, um engenheiro chefe de fábrica e dissidente, atesta este argumento.

Porém, o fator mais humilhante de todo o sistema diz respeito aos salários dos trabalhadores. A nova sociedade, onde todos estariam livres da exploração capitalista, terminou se revelando uma tirania da nomenclatura. Em 1980 atingiu, sem os descontos de impostos, 167 rublos por mês. Uma quantia capaz de manter apenas um homem por mês, e ainda assim dificilmente. Mas esse era o salário médio dos trabalhadores. Na prática, o salário verdadeiro do trabalhador mais simples, como pedreiro, faxineira, etc, era apenas de 100 rublos/mês. Mas a propaganda dizia que primeiro era preciso produzir mais para depois distribuir o bolo. E como poderiam fazer para produzir mais se o próprio sistema não permitia a produção de excedentes?

Comparando com os salários de outros trabalhadores, os 170 rublos/mês era 1/3 do salário médio de um operário francês. Esta era a situação em 1980, 60 anos depois da implantação do socialismo na Rússia. Ora, na Rússia mulheres também trabalham e até as crianças eventualmente. Isso era comemorado como emancipação feminina, mas o autor descobriu que no seu tempo, Marx chamava isso de exploração suplementar.

O trabalho infantil merece um comentário. Os marxistas sempre condenaram o trabalho infantil nos regimes capitalistas. Mas na Rússia, desde os anos 20, foram abertas escolas de aprendizes. “Numerosas crianças, órfãos ou desabrigados (pela prisão e envio dos pais aos campos de concentração), foram assim utilizadas como força de trabalho barata, sob o pretexto de que recebiam, destarte, uma educação de acordo como os princípios do pedagogo e tchekista Anton Makarenko. Sob Stalin, criaram-se escolas de trabalho manual, onde reinava uma disciplina militar, e as crianças tinham de usar um uniforme negro. Ali, eram matriculadas à força crianças em atraso na escolaridade, ou indisciplinadas” (p. 184-185).

Quanto ao nível de vida comparativo, Voslensky afirma que a Nomenclatura simplesmente desistiu de comparar o nível de vida médio da população das duas Alemanhas, das duas Coréias, etc. Porém, um conjunto de medidas foram tomadas para compensar a baixa produtividade de uma população assalariada explorada como baixar os custos de alguns itens: alugueis, pães e massas, e transportes urbanos. Mas os ocidentais que viajavam a Moscou sempre reclamaram dos custos elevados de mercadorias quando comparados com o Ocidente, especialmente os bens de consumo duráveis utilizados pela nomenclatura. Mas por que seriam altos os custos dos alugueis se na União Soviética era autorizada apenas uma área de 9 m2 por pessoa? Um casal com um filho tinha direito a um apartamento de 27 m2, embora tivesse direito a requisitar área maior. Mas seria atendido em uma sociedade do tipo QI (quem indica)?

“É certo que na URSS o pão, as massas e batatas, o leite, os legumes, o milho, e outros produtos básicos são baratos. Por outro lado, a carne, o peixe, as aves, as frutas, o chocolate, o café, os condimentos são caros e raros. Como não se pode comer pão, tendo por sobremesa massas e batatas, 80% do orçamento de uma família soviética média são para a alimentação.

É certo que a medicina é gratuita. As policlínicas e os hospitais postos à disposição da população nunca estão vazios: é preciso ficar na fila durante horas para ser atendido por um médico. Os médicos das policlínicas devem observar uma norma: 15 minutos por paciente, e a metade do tempo é dedicada a encher e assinar a carteira de saúde. Também se tornou habitual granjear a atenção do médico e da enfermeira com presentes e mesmo pagar-lhes; a gratuidade do atendimento não é de fato, assegurada. Não seria melhor retirar dos salários a contribuição necessária para o seguro-doença, o que permitiria a cada um escolher seu médico?” (p. 188).

Eis aí como o regime da Nomenclatura se assemelha lá e cá. Eis como todos os regimes estatais têm os mesmos traços. Mas, por outro lado, quem pertence à classe nomenclaturista tem uma situação totalmente diferente.


A CLASSE DOS PRIVILEGIADOS

Quando se analisam os salários e o padrão de vida da nomenclatura notamos uma diferença abismal em estilo de vida e comportamento, se comparados com o resto da população. E essa diferença é que serve de parâmetro para a afirmação de que os regimes comunistas são baseados em uma classe dirigente do aparelho estatal, que se confunde com o partido, embora o partido comunista seja sempre maior do que o Estado, e que vive às expensas da sociedade, isto é, contra ela e de seu saque permanente. Tratava-se de um novo modelo de elite com as mesmas características em todos os países comunistas.

Lênin deixou claro em seu testamento que os quadros dirigentes não deveriam ter uma remuneração superior à dos operários qualificados. Somente os “técnicos burgueses” poderiam receber salários mais elevados “devido à sua natureza venal e durante o tempo em que fossem úteis” (p. 212). Naturalmente que essas recomendações não foram seguidas. Segundo os estudos do autor, um chefe de setor na burocracia soviética recebia 450 rublos/mês, com direito a 30 dias de férias em local gratuito. O assalariado só tinha direito a 2 semanas por ano. Além disso, o chefe de setor (posição ocupada por Voslensky na burocracia) recebia o 13º salário, a um vale-alimentação para usar na cantina do Kremlin, que era um local onde a elite desaparecia atrás de uma porta envidraçada de aparência comum com uma placa ‘escritório de permissões’, na rua Granovskogo. Ao sair, carregavam embrulhos de papel pardo direto para os carros com os motoristas particulares esperando. Esse local fornecia até mesmo viandas para os nomenclaturistas.

Desnecessário dizer que eram rações tão fartas que serviam para alimentar toda a família. Calculando o valor da bolsa-alimentação e acrescentando ao salário, o autor chegou a 750 rublos por mês, isto é, 5 vezes o salário de um operário (p. 214).

Na burocracia existem adicionais que não são encontrados no trabalho de fábrica. 10% de aumento pelo conhecimento de uma língua estrangeira, por duas línguas: 20%, mesmo que jamais se faça uso delas em serviço. Uma situação semelhante existe no Judiciário brasileiro, uma das nossas nomenclaturas mais privilegiadas do país.

Na nomenclatura, a maior mordomia era que um chefe de setor encontrava todos os produtos de que necessitava em lojas especiais, ao passo que o cidadão comum tinha que procurá-los incansavelmente no comércio oficial, quase sempre desabastecido. Curioso era o imposto de renda, que para qualquer cidadão com rendimentos acima de 200 rublos era de 13%, ou seja, um país socialista que não praticava o imposto de renda progressivo. Como se trata de uma ideologia invertida, esses 13% eram aplicados com o argumento do, pasmem, ‘igualitarismo’. Stalin inventou uma fonte de renda especial para seus apaniguados, chamada ‘o pacote’, que era um envelope com um maço de notas, não muito, mas uma espécie de bolsa-pai dos povos, sem descontos e sem contabilidade. Os subordinados adoravam receber o envelope secretíssimo, pois assim podiam avaliar em que estado se encontravam com o comandante.

Interessante destacar como a sociedade cria a desigualdade social através de subterfúgios com o nome “social”. Por exemplo, na Rússia, existiam “fundos de consumo social” que encobriam “certa quantidade de serviços gratuitos, com a inscrição em uma estação de tratamento ou casa de férias, alojamentos colocados à disposição, inscrição numa creche, num jardim de infância ou num campo de pioneiros, utilização de cantinas, hospitais, ou de clínicas” (p. 216). Esses benefícios eram tratados na burocracia como se pertencessem a todo o povo soviético, mas na verdade eram destinados somente aos membros da nomenclatura. Com tal facilidade, o aparelho do partido falava em termos de “parte invisível do salário”, como se fosse estendida a toda a sociedade.

Outra forma de ganhos adicionais era através dos poucos que tinham autorização para viajar ao estrangeiro, voltar com as malas carregadas de presentes para os parentes, mas que na verdade eram destinados à venda em um mercado interno altamente carente de produtos tecnológicos. Nada demais para os brasileiros da alta nomenclatura que possuem passaporte diferenciado e alfândega livre nos aeroportos. Tal situação levou a Rússia a ser talvez a primeira nação do mundo a criar os ‘free-shops’, naturalmente que com outra denominação. Eram lojas dentro de Moscou que não aceitavam o rublo como moeda de troca. Ou o cliente pagava com moeda estrangeira, acessível somente aos burocratas, ou com certificados que podiam ser convertidos em moeda estrangeira. Tratava-se de moeda estrangeira não utilizada em viagem que eram trocadas por esses papeis nas agências de comércio exterior soviéticas.

E ainda existia o adicional da propina. A corrupção frutifica no adubo da burocracia triunfante. Não se podendo exercer controles ilimitados sobre a burocracia, o propinoduto é azeitado no toma lá dá cá. O paraíso da corrupção era a Geórgia. Mas como esses dados não eram revelados, vindo à tona apenas quando da destituição do secretário do partido local, nunca se soube a real extensão do problema. No Azerbaidjão, se teve notícias de um cargo de procurador de distrito ser vendido por 30 mil rublos. Notícias semelhantes temos no Brasil, onde fiscais de rua do ICMS em São Paulo vendem seus postos antes de se aposentar. Nota-se que um membro do Partido podia comprar o posto e tornar-se o guardião da legalidade socialista na sua província. Mas, para ser o chefe de distrito da milícia, era preciso desembolsar 50 mil rublos. Com esse dinheiro era possível ser presidente de um colcoze (cooperativa de produção agrícola), ainda que fosse um posto eletivo. Como já sabemos do Brasil, os membros do colcoze davam seu sufrágio a pessoas ‘recomendadas’. O posto do diretor do sovcoze (equivalente à confederação de sindicatos ou cooperativas) valia mais: 80 mil rublos. Porém, o primeiro secretário do comitê do distrito do Azerbaijão custava 100 mil rublos e o segundo secretário 20 mil rublos, pois eram a nata da província, e esse dinheiro era distribuído entre os membros do C.C. em Baku. E assim segue o autor, fornecendo os preços dos cargos públicos da sociedade, onde um diretor de teatro conseguia o cargo com uma propina de 10 a 30 mil rublos; um Instituto de Pesquisas poderia ser dirigido por alguém disposto a pagar 40 mil rublos. Um membro da Academia de Ciências do Azerbaidjão poderia ostentar o honorável título por 50 mil rublos. Nas Universidades ‘públicas’, do reitor ao estudante, havia taxas para conseguir uma vaga ou posto. Esses valores não são suposições, mas pertencem a um relatório confidencial apresentado por um membro do C.C. do PC do Azerbaidjão em 1970.

Estabelecido o propinoduto, as iniciativas para acabar com a corrupção apenas atenuavam momentaneamente a voracidade da venda de cargos. Depois de algum tempo, os funcionários nomeados para acabar com a corrupção terminavam imitando os demitidos, o que demonstra que certas práticas são inerentes à burocracia e ao sistema, e jamais acabarão se não se mudar todo o sistema. Pessoas da nomenclatura conseguiam retirar parentes da prisão com correntes de ouro, relógios e coisas do gênero.

Um país, como a URSS, com permanente escassez de alimentos publicou, no pós-guerra, uma obra intitulada Uma Alimentação Sadia e Digestiva que, não obstante, tornou-se a bíblia dos gourmets da nomenclatura. Mas, como se alimentavam os membros da cúpula do partido? “Os restaurantes do PCUS abrem às 11 horas, servindo um almoço leve, com caviar, salmão e esturjão. Bebe-se cumis, uma batida à base de leite de jumento. Um iogurte cremoso e açucarado não poderia faltar. A cantina abre à uma da tarde. Uma orquestra barulhenta recebia fregueses levemente embriagados arrastando os pés. Funcionários da KGB controlavam a entrada, e garçonetes especialmente escolhidas iam e vinham com os pedidos dos nomenclaturistas espalhados pelas salas. Um buffet reservado permite a compra de produtos alimentícios que não se viam mais nas lojas desde 1928. Embora os pratos não fossem excessivos, era possível pedir quatro e até cinco pratos, pagando-se o mesmo preço de uma refeição miserável e indigesta das cantinas comuns, onde, à mesma hora, filas de trabalhadores esperavam para comer durante o descanso do meio-dia. Embora o prédio do C.C. e o restaurante estivessem apenas há 10 minutos a pé, a nomenclatura não dispensava os carros oficiais para não se misturar com o povo que costumava apinhar-se em praças próximas. Para democratizar o ambiente, era permitida a entrada, uma hora antes do fechamento, dos quadros da Escola Superior do Partido e dos colaboradores da Academia de Ciências Sociais” (p. 226).

A refeição é inteiramente gratuita no Hotel do Departamento Internacional do C.C... Os visitantes estrangeiros podem instalar-se no restaurante do Hotel, pedir tudo o que lhe agrade, mandar trazer vinho, conhaque e outras bebidas fortes, tudo de graça. O mesmo sistema se aplica a todas as ‘casas de hóspedes’ do CC nos países socialistas e no interior do país (p. 227). Além disso, existem os banquetes reservados aos dignitários do regime com sua riqueza e abundância de pratos, tudo fornecido gratuitamente com os mais altos cuidados dietéticos. Enquanto isso, os cidadãos soviéticos comuns são obrigados a fazer filar para conseguir, a preço de ouro, produtos alimentícios de qualidade medíocre, no abismo que separa a nomenclatura do resto da população (p. 227).

Outra grande diferença social ocorre na questão da moradia. São conhecidos os problemas graves de moradia, e o empilhamento de famílias nos apartamentos com um único banheiro para dezenas de pessoas. Mesmo com a grande movida no setor de construção nos anos 60 da era Kruvchev, o problema não foi resolvido em 2 décadas. Embora a norma habitacional reserve 9 m2 por pessoa, ela não é seguida. Segundo as estatísticas, a divisão total do número de área residencial construída pelo número de habitantes correspondia a apenas 7 m2/ habitante em 1975. As listas de espera por um apartamento são uma fila sem fim. E em Moscou? Se na capital as estatísticas fornecem uma área de 15 m2/habitante, isso se deve ao fato da grande quantidade de nomenclaturistas habitando ali.

Na nomenclatura, conseguir um apartamento de 100 m2 por um preço ridículo é comum, e além disso uma datcha, comprar um carro sem dificuldade, ou mesmo tê-lo gratuitamente com um motorista de graça, e regalar com isso a família, aproveitar gratuitamente de bons hospitais e repousar, sem despesas, a cada ano, numa casa de repouso. O mais importante na diferença é como são dissimulados os gostos pelo luxo e pela ostentação. Dizendo que precisam receber convidados estrangeiros, os nomenclaturistas dispõem de belas e sólidas construções, com elevadores e largas escadarias, cômodos espaçosos e móveis importados da Finlândia só para eles. Mas quem recebe estrangeiros em casa em um regime ameaçador?

Como se todos esses privilégios não bastassem, um chefe de setor não recebe apenas uma moradia, mas também uma casa de campo para repouso, a famosa datcha. Quem pode ter uma datcha? Pelas leis todo o cidadão pode comprar um pedaço de terra na periferia e construir ali sua casa ou comprar uma casa através de uma cooperativa. Só que um operário precisaria economizar todo o salário durante dez anos. Mas, como era uma sociedade de classes, a distorção é evidente por si mesma. Diz o autor que se tratava de um privilégio reservado inicialmente aos intelectuais que foi depois estendido a toda a burocracia, pois na URSS os burocratas também eram considerados intelectuais, assim como nos EUA todo jornalista é considerado escritor.

Por uma sina do destino, um chefe de setor não precisa pagar pela datcha. Ela não lhe pertence como propriedade pessoal. Ele simplesmente a recebe e passa a ocupá-la vitaliciamente. A vantagem do sistema é que esta condição permite a manutenção e limpeza também fornecidas gratuitamente pela estrutura do Estado. Às vezes, cobrava-se um aluguel simbólico, especialmente nos condomínios de férias à beira de lagos e praias turísticas. Nenhum habitante troca uma lâmpada queimada ou ajusta um parafuso frouxo. Incomoda-se a administração pelos mínimos detalhes. As mulheres não plantam uma flor para embelezar tais ambientes. Tudo tem que ser feito pela administração. “Os nomenclaturistas se estiram em suas redes, passeiam, jogam tênis ou vôlei, comem e bebem na varanda, vão ao cinema” (p. 232). Do outro lado da cerca opaca do condomínio, na casa dos comuns mortais, os habitantes passam seu tempo cavando, pregando, trabalhando da manhã até a noite. Mas considerando que muitos burocratas tinham origem camponesa, muito provavelmente gostavam de jardinagem, mas não o faziam, pois sua posição social não o permitia: noblesse oblige. Entretanto, se um chefe da nomenclatura compra uma casa, ele coloca em nome de seus pais, se compra um carro, coloca em nome dos filhos maiores ou do irmão. Algo que já conhecemos por aqui, sem a necessidade de comentários.

Quem lembrar-se da época da telefonia estatal no Brasil terá suas recordações tumultuadas por pesadelos: era preciso esperar de 2 a 4 anos para conseguir um aparelho na empresa estatal, ou dispor de um bom pistolão. Caso contrário, havia o mercado paralelo que funcionava impulsionado pela corrupção. Ora, um dos símbolos de status na URSS era justamente o(s) telefone(s). Um nomenclaturista não se contentava com uma só linha: uma para a comunicação interna e outra para a externa. E, conforme o degrau na pirâmide, mais aparelhos para funções governamentais importantes. Assim, era comum uma mesinha ao lado da mesa de trabalho cheia de telefones. Esses aparelhos, chamados ‘Vertuchkas’, cresceram com a burocracia a ponto de serem impressos guias telefônicos especiais só para a nomenclatura. A luta por um telefone no automóvel foi encarniçada, especialmente numa época paranóica com a espionagem e com as dificuldades técnicas para atender a todos os requisitantes. Mesmo assim, a nomenclatura venceu as resistências e dispôs dessa facilidade nos carros dos funcionários.

Segundo Voslensky uma das características da postura do nomenclaturista consistia na aparência de estar sempre ocupado e morrendo de tanto trabalhar. Esse tipo de manifestação terminava sendo a psicologia do ambiente para justificar sua vacuidade, semelhante ao ouvido dos membros do nosso judiciário para justificar os 60 dias de férias por ano. Quando alguém falava para o outro sobre a sua boa aparência, a resposta era sempre a mesma: “As aparências enganam” (p. 243).

Como a nomenclatura utilizava os meios de transportes se eles eram comuns a todos? Em primeiro lugar, apesar dos aeroportos e estações ferroviárias cheios, todos os trens e aviões trabalhavam com uma reserva de lugares para os ‘passageiros de última hora’. Enquanto isso, a população fazia fila ante os guichês às vezes por dias seguidos. Como conta o autor:

“Nosso chefe de setor tem sua passagem no bolso (obtida na seção de Transportes do CC só para os membros, funcionando como uma agência de viagem), um Volga negro o leva para a estação ou para o aeroporto. Ele não se dirige para o edifício central, mas para uma sala reservada chamada ‘Sala dos Deputados do Soviete Supremo’. Invenção original que cumula de legítimo orgulho os funcionários encarregados de zelar pelos nomenclaturistas. Isso lhes pode parecer possuir um arzinho democrático, bem no espírito da Constituição: não é uma sala para ‘altas personalidades’, mas uma peça simples, reservada aos representantes do povo, aos quais todos nós damos os nossos votos. Mas quem duvida que, na maior parte do tempo, não são deputados que se vão instalar naquela sala, de móveis requintados, e tapetes macios, à qual se destina um pessoal especial, principalmente os funcionários da Nomenclatura? Além do mais, o número de deputados em viagem não é de tal ordem que justifique a manutenção de uma vasta rede de tais salas. E, depois, era preciso resolver outro problema: como fazer com que estrangeiros, perfeitamente conscientes de não serem deputados no Soviete Supremo, fossem admitidos naqueles locais? Escreveu-se simplesmente, em inglês, ‘VIP Hall’ sobre a placa que assinalava em russo a existência daquela sala. Que, depois, iria ofuscar-se em ser tratado de ‘very important person’?

Guiado por um pessoal amável – bem diferente daquele que, nas outras salas, trata asperamente os usuários –, nosso chefe de setor atinge diretamente o trem ou o avião, alguns minutos antes que os outros viajantes sejam chamados para lá – é preciso evitar que ele encontre o povo nas plataformas ou nos corredores de embarque. No vagão-leito de primeira classe, ou na primeira classe do avião, encontra seus pares. Na aterragem, a escada móvel é colocada, inicialmente, na altura da primeira classe. Ele desce para a pista, inteiramente desembaraçado, e as autoridades locais vêm recebê-lo. Só depois disso deixam-se descer os outros passageiros. No desembarque do trem, ele é, infelizmente, obrigado a se misturar com o povo – mas não é um grande trajeto a fazer na plataforma: basta-lhe atingir a ‘Sala dos Deputados’ da estação de chegada. Na saída reservada, um carro do C.C. do comitê da região ou da cidade do Partido espera para levá-lo a uma residência reservada para ele. Eis um lugar ideal para preparar a locução aos membros do Partido, abordando um tema clássico, como, por exemplo: ‘A União do Partido e do Povo’ “ (p. 245-246).

Uma análise percuciente sobre as diferenças de classe é feita sobre a educação. Lá também os aspirantes à Academia de Ciências Sociais, se menos dotados, não estão com tudo perdido: a seleção por critérios políticos se encarrega de arrumar uma vaga para eles. O mesmo vale para as entradas de teatro, com as reservas sempre atentas à disposição dos funcionários do governo. Enfim, toda a sociedade está organizada para as diferenças de classe. E essas diferenças não são duais. Ao contrário, fazem parte de uma pirâmide que torna uma pessoa tanto mais privilegiada quanto maior sua ascendência na hierarquia funcional do governo-partido. Não vou falar sobre o estilo de vida de Stalin, Beria, Molotov e tantos dirigentes do partido. Segundo Voslensky, eles viviam como os milionários americanos. Desde a primavera de 1922, Lênin tinha 6 carros na garagem. A alienação de Stalin era tal, que sua filha Svetlana (“Vinte Cartas a Um Amigo”) dizia que seu pai quando se referia aos preços das mercadorias falava com os preços de antes da Revolução. A construção de datchas não foi interrompida. A de Pitsunda, na orla do Mar Negro, construída para Kruvchev, possuía um ancoradouro particular onde o líder russo desembarcava para descansar pisando em um tapete vermelho sobre a areia. E as datchas numerosas dos altos figurões eram mantidas por pessoal permanente sob constante aviso da iminência da chegada de seu amo, mesmo que tal ocorresse apenas uma vez ao ano.

Voslensky mostra em um capítulo a vida solitária dos dirigentes e sua total alienação com a vida do povo. O isolamento acabava por embotar a consciência. O paliativo usado por Stalin era a projeção de filmes soviéticos mostrando a vida do povo. Kruvchev zombou de Stalin no famoso XX Congresso após sua morte. Mas Voslensky garante que nem um nem outro conheciam na realidade como vivia o povo. Isso não nos surpreende. Segundo Paul Johnson, Marx que escreveu sobre as condições de vida da classe operária na Inglaterra nunca entrou em uma mina de carvão, apesar de ter sido convidado diversas vezes para isso. Não era preciso: a teoria já explicava tudo. “Pode-se caracterizar de maneira mais marcante uma classe de indivíduos que consegue viver como estranhos no país que governam?” (p. 267). Mas essa constatação não pode ser pública e revelada. Ao contrário, sua realidade está na capacidade de ser invocada para a destruição de um adversário, quando este é acusado de “falta de ligação com as massas”.


A DITADURA DA NOMENCLATURA

Nos altos escalões hierárquicos, a nomenclatura funcionava como se fosse uma teia de clãs ordenada em pirâmide. Os mais poderosos nomeavam seus vassalos, que mantinham fidelidade irrestrita às suas ordens. Como em uma partida de xadrez, a nomeação de um postulante a um cargo mais elevado representava “um lance complexo, uma prova de fôlego prolongada. Não são as qualidades políticas do postulante (menos ainda suas competências funcionais) que são determinantes, mas as manobras políticas” (p. 280). Mas para reduzir o Politburo e o Secretariado do C.C. ao papel de auxiliares do Secretário-Geral só mesmo com a concentração de poderes, momento em que a direção coletiva passa à autocracia aparente dele. Basta analisar o que ocorreu com Stalin, Kruvchev e depois Brejnev. Não era incomum, durante a entrega de medalhas e comendas aos subordinados ouvir dos premiados expressões do tipo: “Queridíssimo camarada... sempre senti muito orgulho, e o sentirei para sempre, de ter passado quase a totalidade de minha vida sob sua direção” (p. 282).

“Com isso, a luta pelo poder não ocorre através dos discursos inflamados das democracias ocidentais. Ao contrário, é uma rede de intrigas sutil em que a retórica só intervém na última fase, quando se trata de apagar, com formalidade política, os erros de que se tornou culpado o adversário já vencido. Enquanto a armadilha não estiver funcionando, não se tornando pública, esforça-se em adormecer a desconfiança do rival através de demonstrações renovadas de amizade” (p. 284).

Voslensky narra em detalhes a luta pelo poder entre Brejnev e Chelepine no golpe de gabinete que destituiu Kruvchev. Como vitorioso, Brejnev destituiu o clã Chelepine com movimentação de cargos, reestruturação de funções, e, naturalmente, com renomeação para postos distantes de Moscou.

Na questão do poder de repressão da KGB, os relatos do autor são particularmente interessantes. Ele não destoa dos demais escritores emigrados, apenas conta detalhes do que conheceu pessoalmente. Podemos assim saber que Beria tinha uma prisão em sua própria residência, com sala de tortura no subsolo para jovens aterrorizadas com suas seções de sadomasoquismo. A crônica dos tchekistas (primeiros membros da polícia política leninista) é sempre demonstrativa do que acontecia nos porões do regime com os dissidentes – um espetáculo de horrores com organização e procedimentos que não se devem subestimar, por ser um legado da polícia czarista aperfeiçoado com requintes que deixariam a SS nazista invejosa de seus resultados. Dentro da Lubianka (a famosa prisão de Moscou para onde eram encaminhados os suspeitos), qualquer policialzinho de quepe se dava ares de Gengis Khan. Pelo resto do país, a crônica do ex-ministro exilado em 1917 Pavel (Paul) Miliukov é digna de registro:

“Cada destacamento da Tcheka tinha sua tortura preferida. Em Kharkov, os tchequistas escalpelavam os prisioneiros, ou descobriam os ossos de suas mãos arrancando-lhes as “luvas”. Em Voronej, colocavam suas vítimas em barricas cheias de pregos no interior, e começavam, então, a fazê-las rolar. Ainda em Voronej, aplicavam um ferro em forma de estrela de cinco pontas, em brasa, na testa do supliciado, e colocavam nas cabeças dos padres coroas feitas de arame farpado. Em Tsarytsin e Kamychin, cortavam os prisioneiros com serra. Em Poltava e Krementchuck, faziam-lhes sofrer o suplício da empalação. Em Lekaterinoslav, crucificavam-nos ou lapidavam-nos. Em Kiev, fechavam suas vítimas em caixões contendo cadáveres em decomposição, enterravam-nos vivos e os desenterravam no fim de meia hora” (p. 306).

Este é o relato dos primeiros anos da guerra civil que consolidaram o poder dos bolcheviques. Com semelhante legado, não se poderia esperar coisas muito edificantes sobre o respeito aos direitos humanos nos anos de consolidação do regime. De fato, a Rússia foi um dos poucos países que se conhece onde o Culto da Delação foi incentivado pelo aparelho de Estado, promovendo a destruição de famílias e a paranóia generalizada.


UMA CLASSE QUE ASPIRA À HEGEMONIA MUNDIAL

Procurando demonstrar que a natureza russa sempre foi a conquista territorial, já analisada por Marx no tempo do Czarismo, e a ocultação de documentos do tempo do Império para não permitir comparações com o presente comunista, Voslensky trata o internacionalismo russo como sendo uma fusão da teoria marxista com o expansionismo russo. Mas a questão da agressividade diz respeito à realpolitik já demais conhecida por nós. Mesmo com a guerra fria, o autor insiste que a Rússia, não obstante sua falta de escrúpulos em mandar para o matadouro milhões de seus concidadãos, não cometeria a insensatez de se envolver em um conflito onde sua ameaça fosse evidente, como no caso de uma guerra atômica. Paradoxalmente, sua natureza de classe exploradora e parasitária é que a protegia do aventureirismo no terreno de uma conflagração mundial. A fórmula é expressa com a seguinte observação: a nomenclatura não quer a guerra, ela quer a vitória. Isto significa uma estratégia de vencer sem combater, ou seja, de subversão e levantes, de golpes e insurreições.

A cronologia desses ataques evidencia a fórmula: 1920, a Polônia; 1939, a Finlândia e de novo a Polônia; 1940: Letônia, Lituânia e Estônia; 1944, a Bulgária; 1945, o Japão; 1956, a Hungria; 1968, Tchecoslováquia; 1979, Afeganistão. Sem falar no caso de Cuba, na Intentona Comunista no Brasil, na China e Coréia, e na guerra civil espanhola.

Essas ações foram conduzidas sob o manto da chamada “coexistência pacífica”, uma abordagem propagandística para o reconhecimento de 2 sistemas mundiais e da necessidade de convivência. Assim, a détente internacional (a distensão) foi uma maneira que descobriram para camuflar um conceito nebuloso para fins de discursos políticos vazios. Voslensky enfatiza a necessidade soviética de garantir a supremacia militar como meta de sobrevivência. Mas termina reprovando a embriaguez chauvinista e hegemônica que só tem feito paralisar a sociedade soviética em função de falsas conquistas e de um messianismo ideológico superado.

A liberdade e as boas condições de vida dos habitantes de um país são mais importantes que o sentimento de grandeza de seus regimes. E pergunta se o Japão militarista dos anos 30 e 40 seria maior do que o atual. Ou se os alemães desejariam trocar seu estilo de vida atual pelo sentimento de pseudograndeza do Terceiro Reich. Isso lhe permite concluir que a tentativa hegemônica dos nomenclaturistas estava fadada ao fracasso.


UMA CLASSE PARASITÁRIA

A nomenclatura é a classe em que o poder permite a ascensão à riqueza e não a riqueza ao poder como no capitalismo. Eis aí uma explicação para o horror causado pelo capitalismo na esquerda brasileira, e também porque ela está sempre cercando o poder. O horror à privatização vem desse conhecimento, ou dessa subjetividade como eles costumam dizer. Se o parasitismo é intrínseco ao socialismo de Estado, Voslensky termina profetizando que sendo o regime por natureza parasitário, todo o esforço de sobrevivência terminaria em vão, e o Ocidente não só ultrapassaria a capacidade soviética em todos os aspectos pelo seu próprio modelo de avanço tecnológico, como seria capaz de ser um fator determinante na desintegração da URSS em 1992.

Uma classe parasitária leva a sociedade para a desintegração quando ela começa a se tornar mais cara. A parte do produto nacional que ela se outorga começa a aumentar, enquanto, simultaneamente, o nível de contribuição para este produto começa a baixar. No Brasil conhecemos muito bem o que ocorre com as estatais e o próprio governo. Em determinado momento, as receitas de impostos não sustentam mais o funcionalismo, as sinecuras e os privilégios da oligarquia. Começa a inflação, a balança comercial acusa déficits insustentáveis e empréstimos internacionais são necessários para equilibrar os gastos. O resto da história é conhecido dos brasileiros.

Podemos argumentar que um dos senões à sua obra são suas respostas para as causas do parasitismo. Para Voslensky, o parasitismo é a natureza íntima da própria classe. Mas sabemos muito bem que o parasitismo está intimamente relacionado com o mundo feudal, e com o poder aristocrático, oligárquico e tirânico. O parasitismo é um componente do burocratismo estatal que convive tanto mais nocivamente na sociedade quanto maior sua presença na estrutura social. Por isso, o livro ‘A Nomenklatura’ tem importância entre nós. A pergunta se podemos ou não evoluir para o socialismo do tipo soviético pode ser respondida afirmativamente, mas nunca com esse nome porque nem mesmo seus promotores o desejam. Já estamos no meio do caminho e avançando cada vez mais. As propostas sociais de reforma política defendidas pelos grupos socialistas e marxistas no Brasil indicam claramente esta direção. Nossa distância do bolchevismo encurta-se a cada dia à medida que reforçamos a estrutura estatal, os cartórios, monopólios, sindicatos, organizações sociais saqueadoras da riqueza do país, seja na forma assistencial ou na forma de corrupção, e que permitimos um sistema de ensino calamitoso porque ideologicamente dominado por esquerdistas obscuros.

O único distanciamento possível do bolchevismo brasileiro está no caminho da sociedade do conhecimento, tendo como modelo de convergência os países asiáticos que se baseiam em sistemas produtivos, de capitalismo avançado, canalizando as energias humanas para o ativismo, administração, criatividade e invenção.

Sob a imposição do capitalismo, os homens começaram a se mostrar atarefados, enérgicos, vigilantes, ordeiros e cuidadosos com suas coisas. Perderam o lustro intelectual, o brilho erudito, mas ganharam o bem-estar e a tecnologia. E a moderna sociedade capitalista, a sociedade da informação, está novamente colocando os seres humanos em uma nova ordem social, onde a cooperação e a participação têm um alcance muito maior do que tudo o que já foi pensado racionalmente sobre avanços sociais no passado. O brilho voltará com sua diversidade, e o conhecimento será cada vez mais valorizado e determinante na vida social. Só não embarcam nesta viagem os países preparados para frustrá-la.